Uma surpresa este corpo
e ser eu isto tudo, os pés e as pernas que realizam o movimento, a boca que
beija e respira, os braços que abraçam e as mãos que escrevem as palavras
fogueira, e os ouvidos que escutam esses hinos com vista para o mar, promessas,
sempre promessas que ficam por cumprir.
A gruta esconde e
protege o nosso amor proibido num deserto sem fim, quente e opressor, onde as
pessoas importantes acabam por falecer ao meio-dia de um dia qualquer.
O lápis afiado escreve
as letras das últimas palavras num caderno repleto de histórias e desenhos. Os
apontamentos dormem connosco na escuridão da gruta onde é necessário matar para
sobreviver. Morrer apenas porque o nosso nome é o errado, ocultei-lhe o som das
sílabas para que o recanto das letras que o compõem se altere e ganhe uma
métrica mais suave e condizente.
Nem sei bem o que estou
a dizer, as pinturas rupestres da nossa gruta foram executadas com a tinta-sangue
dos artistas, e sobreviveram até aos nossos dias. Personagens esguias e
acastanhadas munidas de lanças e punhais encontram-se espalhadas pelas paredes
e teto do nosso abrigo. A cápsula do tempo chegou ao fim, a história passou-se há
milhares de anos, mas está aqui, tão nítida, escrita nestes desenhos quase
infantis.
É possível pintar e escrever
na escuridão!
Ver, nitidamente,
sonhar o inconcebível.
Somos pequenos anjos
raros, tão fictícios e inimagináveis que nos tornámos reais. É um absurdo, mas
os absurdos misturam-se do mesmo modo que as impressões se multiplicam e secam
e caem iguais às folhas outonais do meu quintal.
Vejo uma praia
abençoada num mar do sul.
Somos amantes
conscientes e apaixonados a viajar num pequeno veleiro onde nos renovamos a
cada instante. Olhamo-nos e sabemos exatamente o que pensamos, conhecemo-nos em
cada sensação um do outro, dolorosamente não acontecida, um amor de perdição
impresso apenas nesta miragem não impressa de um livro por acontecer. Estou
preso a esta saudade do que está para suceder, pertenço a esses lugares onde me
aprendi a multiplicar.
Agora vejo casas
simples e coloridas, foram construídas paralelas à faixa costeira, e nelas
consigo imaginar a nossa vida numa meditação amorosa. A porta azul número um da
rua caribenha é igual a uma outra por onde já passámos, afastados, em tempos
diferentes. Todas estas coisas ainda não nos pertencem, mas já nos pertencem, são
nossas e vivem do mesmo modo que as minhas palavras, chegam destas visões
perdidas do outro lado do meu muro, do outro lado de mim…
Em cada uma delas uma
impressão indefinida ressoa, vibra constantemente, mas o que deveria parecer um
completo absurdo é aquilo que me prende a esta vida que não domino.
Preciso de descansar de
mais um dia longo, um abismo incapaz de conceber veleiros verdadeiros. Sei que
ressono enquanto durmo, revolta-me a ideia de não ser capaz de descansar sem
promover essa irritação às partículas invisíveis da atmosfera que me protege e
envolve. Acordo ainda mais cansado do que antes de dormir, e depois tento
relembrar as histórias que não são minhas. É de um cansaço sem fim, um cansaço
feito de saudade e sensações. Aprendi a gostar deste processo. Apesar de tudo é
nos sonhos que as cenas se tornam mais vivas e intensas.
Deixei de ter receio
que em mim possa estar a acontecer a profecia do Mago – cada sonho dele encarna
numa outra pessoa que passa a sonhá-lo, e ele não.
Para criar é
imprescindível contracenar com a destruição, escutar os sons que ela produz e
dos quais acabo de encontrar vestígios no sono inacabado que vou praticando.
Não durmo, mas penso em mim já a dormir, sem ressonar, e gozo o momento
abençoado, gozo por inteiro a franca possibilidade de dormir. A alma suspensa,
as palavras desertas, os hábitos iguais ao ontem e anteontem, quase iguais aos
dias todos antes deles.
Só agora dei conta que
hoje já é a manhã do novo dia, e eu aqui parado, à deriva, sem dormir nem
ressonar…
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