quinta-feira, 20 de outubro de 2016

24 - SACRILÉGIO



Uma surpresa este corpo e ser eu isto tudo, os pés e as pernas que realizam o movimento, a boca que beija e respira, os braços que abraçam e as mãos que escrevem as palavras fogueira, e os ouvidos que escutam esses hinos com vista para o mar, promessas, sempre promessas que ficam por cumprir.
A gruta esconde e protege o nosso amor proibido num deserto sem fim, quente e opressor, onde as pessoas importantes acabam por falecer ao meio-dia de um dia qualquer.
O lápis afiado escreve as letras das últimas palavras num caderno repleto de histórias e desenhos. Os apontamentos dormem connosco na escuridão da gruta onde é necessário matar para sobreviver. Morrer apenas porque o nosso nome é o errado, ocultei-lhe o som das sílabas para que o recanto das letras que o compõem se altere e ganhe uma métrica mais suave e condizente.
Nem sei bem o que estou a dizer, as pinturas rupestres da nossa gruta foram executadas com a tinta-sangue dos artistas, e sobreviveram até aos nossos dias. Personagens esguias e acastanhadas munidas de lanças e punhais encontram-se espalhadas pelas paredes e teto do nosso abrigo. A cápsula do tempo chegou ao fim, a história passou-se há milhares de anos, mas está aqui, tão nítida, escrita nestes desenhos quase infantis.
É possível pintar e escrever na escuridão!
Ver, nitidamente, sonhar o inconcebível.
Somos pequenos anjos raros, tão fictícios e inimagináveis que nos tornámos reais. É um absurdo, mas os absurdos misturam-se do mesmo modo que as impressões se multiplicam e secam e caem iguais às folhas outonais do meu quintal.
Vejo uma praia abençoada num mar do sul.
Somos amantes conscientes e apaixonados a viajar num pequeno veleiro onde nos renovamos a cada instante. Olhamo-nos e sabemos exatamente o que pensamos, conhecemo-nos em cada sensação um do outro, dolorosamente não acontecida, um amor de perdição impresso apenas nesta miragem não impressa de um livro por acontecer. Estou preso a esta saudade do que está para suceder, pertenço a esses lugares onde me aprendi a multiplicar.
Agora vejo casas simples e coloridas, foram construídas paralelas à faixa costeira, e nelas consigo imaginar a nossa vida numa meditação amorosa. A porta azul número um da rua caribenha é igual a uma outra por onde já passámos, afastados, em tempos diferentes. Todas estas coisas ainda não nos pertencem, mas já nos pertencem, são nossas e vivem do mesmo modo que as minhas palavras, chegam destas visões perdidas do outro lado do meu muro, do outro lado de mim…
Em cada uma delas uma impressão indefinida ressoa, vibra constantemente, mas o que deveria parecer um completo absurdo é aquilo que me prende a esta vida que não domino.
Preciso de descansar de mais um dia longo, um abismo incapaz de conceber veleiros verdadeiros. Sei que ressono enquanto durmo, revolta-me a ideia de não ser capaz de descansar sem promover essa irritação às partículas invisíveis da atmosfera que me protege e envolve. Acordo ainda mais cansado do que antes de dormir, e depois tento relembrar as histórias que não são minhas. É de um cansaço sem fim, um cansaço feito de saudade e sensações. Aprendi a gostar deste processo. Apesar de tudo é nos sonhos que as cenas se tornam mais vivas e intensas.
Deixei de ter receio que em mim possa estar a acontecer a profecia do Mago – cada sonho dele encarna numa outra pessoa que passa a sonhá-lo, e ele não.
Para criar é imprescindível contracenar com a destruição, escutar os sons que ela produz e dos quais acabo de encontrar vestígios no sono inacabado que vou praticando. Não durmo, mas penso em mim já a dormir, sem ressonar, e gozo o momento abençoado, gozo por inteiro a franca possibilidade de dormir. A alma suspensa, as palavras desertas, os hábitos iguais ao ontem e anteontem, quase iguais aos dias todos antes deles.
Só agora dei conta que hoje já é a manhã do novo dia, e eu aqui parado, à deriva, sem dormir nem ressonar…

Sem comentários:

Enviar um comentário