quarta-feira, 29 de junho de 2016

07 - MISTÉRIO



Eis a hora em que escrevo, sem acreditar no que vejo, num local onde nada é importante, onde ainda não é tarde, nem cedo. Qual a substância da indefinição do que aqui se passa e onde tantos nada têm para dizer. O tédio atravessa a atmosfera que se adensa, e os nervos crescem até ficarem à flor da pele. Mantiveram-se esquecidos, num torpor diferente do habitual, mas a solidão alterou-lhes o aspeto e a essência, tornou-os agressivos e incontroláveis. As palavras e as ideias foram repetidas até à exaustão em tons monocórdicos, frios, o cansaço cresceu e tomou conta dos presentes que salpicaram de saliva as mesas, quase raivosos. Depois cuspiram as opiniões com uma ausência de coisa parada, mais parecida com desespero. Assim se passou esse instante feito de nada, perdido no espaço enlameado onde redigi estas palavras para sobreviver.
Hoje relembro o dia que foi ontem e que perdi. Um dia inteiro, perdido, e como me custou tê-lo perdido assim. Deixei de escutar, fiz de conta que ouvia, mas o ruído passava ao largo sem me atingir, viajava em carroças lentas e velhas que o transportavam à velocidade do som, em câmara lenta, até que parou e nada mais se escutou. A cidade era apenas sentida, permaneceu parada no tempo enquanto a luz dos relâmpagos acendia o céu em rasgos brancos luminosos. A sala desapareceu, foi consumida por uma imensa oportunidade de mudança e fugiu, sobressaltada, silenciosa, sem despedidas circunstanciais. Desapareceu para outro lugar e com ela levou todos os que ali se tinham reunido. Eu, que tinha sido ágil e dela me ausentara antes do início da tempestade, sobrevivi, com um alívio feito de lágrimas derramadas pelo dia que ali acabara de perder. A noite ficou quente e abafada, as nuvens não se afastaram e mantiveram a tempestade por tempo indefinido. A luz do maior dos relâmpagos rasgou os céus e nele desenhou uma mão branca que devolveu o som às coisas do meu mundo. O calor manteve-se por mais algum tempo, e só eu sei como o detesto. As suas garras invisíveis são implacáveis, atiçam fogos que são o que de mais triste o verão tem para oferecer. A sala regressou ao mesmo local de onde tinha desaparecido, sem ninguém lá dentro, o que me fez feliz. Os barulhos da rua acalmaram-me a dor e a alegria, tudo regressou à normalidade, não sei porquê. Foi um pequeno mistério o que ali aconteceu.
A chuva começou a cair e limpou as ruas e avenidas.
O vento forte varreu-as.
As paredes das habitações deixaram de ter janelas.
Viaturas elétricas recuperaram a energia e recomeçaram a subir e a descer a calçada com os passageiros no estômago. Eu entrei dentro de uma delas que passava na alameda onde moro para retornar a casa.
Eram quase duas horas da manhã quando ganhei alguma esperança em poder dormir um pouco, e aqui estou.

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