terça-feira, 21 de junho de 2016

04 - O DIA



A manhã acordou bela e luminosa, anunciou-se em tons alaranjados e azuis, uma porta não vazia da existência, uma continuação do perpétuo movimento cósmico em contraste com a singeleza da rotação deste pequeno planeta. Acendi-me e recebi o anúncio consciente, descalço, nu. Atravessei de novo o corredor da casa em direção à cíclica rotina. Fiquei grato pela luz do novo dia, voz amiga e concreta, inventada para nos levantar o corpo e salvar a vida, e vestir a roupa e comer e ser e fazer, uma outra vez, tantas outras vezes, até se colar à alma esta espécie de querer que ela possa, pelo menos, permanecer mais uns instantes. O tempo não tem forma de ser travado, segue a direito pelos lugares que ajuda a murchar, ele que esteve sempre ali, desde o primeiro instante em que a lágrima se apresentou, com estrondo bíblico, e tudo aconteceu. O nada, este nada que existe, mais do que todas as coisas, espalhado pelos intervalos das entidades cósmicas que se inclinam perante a sua grandeza, é o reino do silêncio e da escuridão. A ordem humana não faz nenhum sentido. Só poetas conseguiriam explicar esses dramas, viajando de um lugar para o outro em rimas feitas de propósito para esse fim. Enganar-se-iam, uma e outra vez, seriam expulsos de muitas galáxias, encontrariam outras tantas que lhes abririam as portas de par em par, e sem muitos equívocos, lá continuariam a sua escrita, com a normalidade dos desenganos que só aos poetas se permite. Escravos!
Outra noite mal dormida de um sono aos solavancos carregado de pruridos. Uma grande parte de mim logrou alcançar o descanso, a parte metade de mim que aqui não escreve o que divaga. Está sempre comigo, à espera que eu também consiga adormecer sem sonho nenhum para perturbar. Caminho a dormir, mas se dormi, porque durmo acordado? Devo estar doente, escuto o Mago, vezes demais, mas é só a ele que preciso de escutar. Inesperado, justo, sonhador, demente, perturbado, solitário, sofredor, reinventou-se vezes demais, até ser tantos e nenhum neles todos, partes perdidas que regressavam, metamorfoseadas, ao primeiro ser que as criou. Os rostos invisíveis, tão conhecidos, tão inteligentes, expressivos, alguns banais de faces esquálidas e repetidas, mas eram essas caras escritas em fotografias amareladas pelo tempo que mais me comoviam. Representam, agora, o lugar onde consigo compreender uma infinitésima parte do enigma, e fico quase tão aliviado como Ele, que julgou sempre ser esta vida a mais monótona das partes do sonho, ou de um outro que exista em lugar diferente desta que já não tem solução.
O Homem só podia estar doente. Convivia vezes demais com a bebida que lhe complicava a lucidez indesejada, parte da substância do todo onde habitava e onde já não se sentia bem o mesmo. Tudo passa, tudo se vai, até o princípio desta manhã onde despertei partiu depressa, tão bela e luminosa como chegou, e por lá ainda brilha nesse instante onde respirei. Foi coisa minha, só minha, que aqui entendi ser justo partilhar por nela ter acontecido. Eu vi o céu laranja da manhã tornar-se azul, e depois o astro brilhou intensamente até fazer desaparecer as montanhas que antes o escondiam. Tudo passa, tudo o que se passa é neste lugar onde acontecemos, que é coisa nenhuma e muito menos existe nesta folha em branco que nem existe.
Está perto o fim do dia. Sentado à cadeira, aguardo que o sino antigo finja o aviso para eu me retirar da sala bafienta e inútil onde me encontro. A tarde transfigura-se na noite que cairá, em breve, e os olhos descansarão, como costume, separando-me deste hoje bordado a luz. Vozes, que nada dizem, fazem crescer a vulgaridade e o tédio profundo. Fúteis, alinhavam sugestões sumptuosas na mesma rua triste de sempre. Traduzem os fingimentos e o ridículo através de conversas incompreensíveis, e a luz do dia atravessou os seus corpos moribundos.

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