sexta-feira, 24 de junho de 2016

05 - REPÚBLICA



As viaturas sobem e descem a rua, ruidosas, iguais a ontem, neste dia corajoso e infinito. Fogem, ignorantes, intervaladas, quase inconscientes, algumas agressivas, outras pasmadas, a maioria inútil. Avançam em direção desconhecida, incapazes de meditar, correm brilhantes e vaidosas, aceleram no asfalto real, velho e gasto por tantas passagens já ali acontecidas. Não possuem alma, nem sequer imaginária, são autómatos solitários desprovidos de inteligência e sentido. Latas enferrujadas destroem o sossego e o silêncio deste feriado novamente legal que outros tinham resolvido apagar. Viva esta senhora ambiciosa, mulher esbelta de trajes simples e seios descobertos que sorri com a mesma frescura do dia em que foi proclamada. É nosso este caminho legítimo que percorremos e a ocasião é de alegria.
Na rua sobre a qual me debruço, olho a passagem de mais viaturas indefinidas, cometas rolantes que tardam em acordar, um pardacento molho incolor que se mimetiza com o asfalto sujo e oleado. Chegam-me, de longe, as palavras dos discursos decrépitos de quem a devia saber festejar, mas a madame desnudada mantém-se tão bonita e fresca como nesse distante dia em que nasceu. Destaca-se das fachadas antigas dos edifícios da capital, alegre e despreocupada. Corre descalça por entre os herdeiros do mesmo povo que a recebeu. Nobre em movimentos, ágil, tão humana como o sopro leve da brisa que lhe beija o rosto e os seios e os ombros alvos, esquece-se de tudo ao olhar o rio que, sereno, a reconhece. O seu coração canta de alívio, um suspiro amplo e ruidoso enche-a de orgulho neste dia em que tantos a vieram festejar.
Repousa, mergulha os pés na água do rio que é a sua casa e o seu campo e a sua essência e que a convida a nele entrar. Atreve-se a aceitar, mais um pequeno passo os seus cabelos ficam tapados pela corrente que se estende até ao mar. Que pena estar ali gente demais a chamar o seu nome de volta, e ela finge não escutar. Inerte, deixa-se levar pela corrente, de cabeça virada para o céu, sem fazer nada, sem fazer mais nada, sem ter nada que fazer a não ser repousar.
Os carros cinzentos continuam a descer e a subir a estrada, quebram o silêncio e o repouso. Como gostaria de os fazer parar, de os apagar com um gesto que não sei fazer. Nunca se cansam, reles viaturas vulgares. Na minha consciência já não existem, enviei-os para uma cela monótona e sórdida para que se conheçam e apodreçam, vesti-lhes trajes de prisioneiros condenados e as latas fumarentas rangeram de descontentamento por terem perdido a sua inutilidade. Serão reciclados, transformados em flores e em ar puro, em florestas eternas e verdejantes, em cores e em perfumes de campo, serão, acima de tudo, capazes de raciocinar pela primeira vez como coisa livre que não foram.
A mulher nada para além do farol que a cumprimenta, e ela acena de volta, recolhe à casa que é o vasto oceano que une e já não separa.
O pano cai sobre a ilusão deste dia que reli.

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