As viaturas sobem e
descem a rua, ruidosas, iguais a ontem, neste dia corajoso e infinito. Fogem,
ignorantes, intervaladas, quase inconscientes, algumas agressivas, outras
pasmadas, a maioria inútil. Avançam em direção desconhecida, incapazes de
meditar, correm brilhantes e vaidosas, aceleram no asfalto real, velho e gasto
por tantas passagens já ali acontecidas. Não possuem alma, nem sequer
imaginária, são autómatos solitários desprovidos de inteligência e sentido.
Latas enferrujadas destroem o sossego e o silêncio deste feriado novamente
legal que outros tinham resolvido apagar. Viva esta senhora ambiciosa, mulher
esbelta de trajes simples e seios descobertos que sorri com a mesma frescura do
dia em que foi proclamada. É nosso este caminho legítimo que percorremos e a
ocasião é de alegria.
Na rua sobre a qual me
debruço, olho a passagem de mais viaturas indefinidas, cometas rolantes que
tardam em acordar, um pardacento molho incolor que se mimetiza com o asfalto
sujo e oleado. Chegam-me, de longe, as palavras dos discursos decrépitos de
quem a devia saber festejar, mas a madame
desnudada mantém-se tão bonita e fresca como nesse distante dia em que nasceu.
Destaca-se das fachadas antigas dos edifícios da capital, alegre e
despreocupada. Corre descalça por entre os herdeiros do mesmo povo que a
recebeu. Nobre em movimentos, ágil, tão humana como o sopro leve da brisa que
lhe beija o rosto e os seios e os ombros alvos, esquece-se de tudo ao olhar o
rio que, sereno, a reconhece. O seu coração canta de alívio, um suspiro amplo e
ruidoso enche-a de orgulho neste dia em que tantos a vieram festejar.
Repousa, mergulha os
pés na água do rio que é a sua casa e o seu campo e a sua essência e que a
convida a nele entrar. Atreve-se a aceitar, mais um pequeno passo os seus
cabelos ficam tapados pela corrente que se estende até ao mar. Que pena estar
ali gente demais a chamar o seu nome de volta, e ela finge não escutar. Inerte,
deixa-se levar pela corrente, de cabeça virada para o céu, sem fazer nada, sem
fazer mais nada, sem ter nada que fazer a não ser repousar.
Os carros cinzentos
continuam a descer e a subir a estrada, quebram o silêncio e o repouso. Como
gostaria de os fazer parar, de os apagar com um gesto que não sei fazer. Nunca
se cansam, reles viaturas vulgares. Na minha consciência já não existem,
enviei-os para uma cela monótona e sórdida para que se conheçam e apodreçam,
vesti-lhes trajes de prisioneiros condenados e as latas fumarentas rangeram de
descontentamento por terem perdido a sua inutilidade. Serão reciclados,
transformados em flores e em ar puro, em florestas eternas e verdejantes, em
cores e em perfumes de campo, serão, acima de tudo, capazes de raciocinar pela
primeira vez como coisa livre que não foram.
A mulher nada para além
do farol que a cumprimenta, e ela acena de volta, recolhe à casa que é o vasto
oceano que une e já não separa.
O pano cai sobre a
ilusão deste dia que reli.
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