sábado, 25 de junho de 2016

06 - O BUROCRATA



As regras que definem o que devemos e as que nos balizam o que podemos e não podemos, são filosofias próprias ministradas por estúpidos, como o Mago avisou. Ajudam na fabricação de bandidos e charlatães sem escrúpulos. Avisos supérfluos e constantes sufocam-nos com uma pseudosseriedade de leis, normas, decretos e diplomas, despachos, processos, ofícios decadentes, procurações, procedimentos irritantes, princípios, minutas, atas, adendas, diplomas com ou sem alíneas a revogar a alínea do ponto anterior de um outro qualquer anterior despacho ou lei ou decreto acerca desse tudo do inteligente que é a coisa nenhuma. Medito, calado, nesta procissão de inutilidades criada para organizar o destino, para lhe dar uma ordem vaga e imprecisa, e penso nas vidas gastas a decretar, a legislar, dolorosas vidas gastas a catar as orientações necessárias para definir o que não pode ser definido. Surdos e mudos, lá seguem a ordenar, andrógenos, esses androides da burocracia dolente, a matar os dias sem felicidade, à espera de nunca existir, a matar os dias felizes dos outros que passaram a odiar por tentarem existir. As paredes escuras onde processam e chafurdam nos sistemas legais, que são bem maiores do que os sonhos absurdos que nunca tiveram, apagaram-lhes as memórias para melhor poderem legislar. Chapinham com os dedos nas teclas das máquinas enferrujadas à procura do número correto, do item correspondente ao parágrafo que indica o acrescento ao princípio daquele específico modelo de minuta que fará a diferença na compreensão da alteração à lei anterior que tinha sido revogada pelo despacho-conjunto que era maior do que o dia e a noite em que foi inventado, fluído, certo, oleado, o mais indicado para a específica situação. São uns merdas, inúteis, absurdos merdas habitantes das trevas, coisas negras e grotescas, gárgulas decadentes da imponente catedral da legislação.
Talvez amanhã resolvam sobreviver e fujam do alto da construção onde os aprisionaram para ajudarem a aprisionar os demais. Ganhariam forças e cores garridas, desapareceria a angústia que sempre os acompanhou, uma angústia que nos foi passada, tal como o cansaço e a indiferença e o esquecimento do que realmente importa. O vírus propagou-se como fogo no verão, mas o outono veio e com ele a esperança de que esse dia está para chegar. Os papéis continuam a amontoar-se, como cordilheiras insanas, nos gabinetes dos legisladores, nas antecâmaras dos escriturários, nas gavetas impossíveis das secretárias, no chão poeirento das salas de audiências, nos cacifos apinhados, por cima dos armários invisíveis e dos cacifos apinhados, sombras bailarinas de impérios ruinosos. São a prova viva deste insólito sistema silencioso criado para corroer e massacrar, até que a morte e o vento cheguem e nos arrastem, em silêncio, como folhas leves, rumo à liberdade.
O meu colchão está carregado de papéis, e dói-me, tal como as costas do meu tronco em miniatura. Somos poeira cósmica, quase invisíveis, e um dia o nosso conhecimento destas coisas terminará, e lei nenhuma nos sobreviverá porque não merece. Cairei para bem longe daqui, ou talvez para o exato lugar onde me encontro, daqui a uns anos, ou daqui a tempo nenhum, mas tudo recomeçará. Hoje já é outono, o princípio do outono, mas o sol ainda sorri e não necessitou de lei nenhuma para o fazer. Que sentido teria uma lei para o rei sol? Que filosofia, que sonho pode habitar no coração do astro que ilumina a existência do planeta que é nosso? Ele é a única lei, fósforo dos impérios vulgares criados pelo homem pela influência ímpar da sua luz, é o abismo e o calor dos deuses, o construtor da casa singular que habitamos, paisagem azul e branca, poema minúsculo e brilhante, a terceira rocha do sistema metafísico criado a partir da pequena lágrima inicial.
Regras, para que servem? Digo não às regras dos homens que para nada servem, apenas para servir. Sonhar, é só o que importa, contemplar, é tudo o que importa, conseguir abandonar o corpo físico com palavras casuais, conseguir fazê-lo para erguer histórias e poemas, escutar a extensão de outros inexistentes, contar mentiras, descrever teorias à passagem da vida, frases, estados de alma. Entender… é tão difícil entender a nossa inimportância.
Mago, só Tu sabias o conforto que era ser pequeno e poder pensar em ser feliz.

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