São nossos os passos que compreendo? Um abismo enorme
fez-me estremecer após o ter vislumbrado e compreendido. Ali, diante de mim, o
espaço vazio, horroroso, imenso, inquietante. Nele me debrucei,
inconscientemente, estava possuído pelo som das balas que atravessavam o precipício
e me assobiavam aos ouvidos. Não se calavam, nada mudava, apesar do cansaço
acumulado dos combatentes que não se conseguiam afastar daquela guerra
sanguinária e sem sentido. Dali não se afastavam um só milímetro, agarrados às
armas que mantinham a cuspir fogo de forma continuada, quotidiana, porque nada
mais ali havia para fazer senão disparar até à exaustão. A morte não chegava,
esteve sempre ali bem perto de mim, mas não chegava. A tragédia morava do outro
lado do abismo, habitava o profundo vale que meus olhos cansados não alcançavam,
escondido pelas muitas nuvens que o cobriam e escondiam, lá bem em baixo. O meu
corpo trémulo não se deixou enganar, e nem o som irritante das balas e dos
disparos conseguiram esconder a rua principal para onde tinha sido atraído. Os
jardins eram maravilhosos, mas estavam do lado de lá, no lugar onde as balas
caíam. Fico quase sempre esquecido deste lado errado das coisas, no meio de
tudo isto e de coisa nenhuma. Iludi-me! Julguei ver o que não era verdadeiro,
escutar sons inexistentes, e o sono voltou, o muito sono que sempre me
acompanhou, todo o sono, e as pálpebras pesaram-me mais do que o tamanho da
distância do abismo.
Talvez tivesse chegado tarde demais, ou cedo demais.
Talvez. Sinto esta frustração, pois o tempo de aqui estar não era este.
Deixei-me arrastar até este lugar, concordei com os argumentos que me
apresentaram, e eis-me agora com este sentimento incerto e de dúvida, deixei de
compreender. Não existe solução para este enigma, desapareceu hoje de manhã
antes de eu ter chegado, e deixei de ser o homem velho e pesado que pensou em
atravessar o vazio como se fosse um pássaro impossível de interromper. A viagem
terá de se realizar, amanhã, depois, quando o Destino entender, quero chegar ao
outro lado, conhecer os pormenores e descobrir as pessoas que ali desembarcaram
antes de mim. Tenha pressa de chegar, e inveja dos que lá estão. Bebi um copo
de vinho novo sem entontecer, e fui levado a acreditar que já não faltará muito
para sair deste carro inútil onde não tenho existido. Fecho os olhos, voltei de
novo a sonhar o sonho maldito, estou cansado, as balas não param de zunir à
minha volta, não param de não me acertar. Decido dar um passo em diante na
direção do abismo que se esconde por detrás do nevoeiro cerrado que ganhou
estranhos tons de verde e de azul, antes de se ter tornado neste manto branco
luminoso onde eu caio desamparado para dentro da vida.
Alguém será capaz de me dizer onde nos encontramos?
Que nova filosofia será esta que desconhecemos? Mago, consegues escutar-me?
Consegui chegar até esta moradia que também te embalou. Finges não me escutar,
e eu faço de conta que sou capaz de te conhecer, o que faz de nós pessoas
ridículas, tão ou mais ridículas do que a manhã do dia que ainda está por
acontecer.
O sonho é tudo aquilo que nos embala.
A luz do novo dia ergue-se depois de nos ignorar,
serena como sempre, imperial e sorridente, como sempre, e beijar-nos-á as faces
com o seu calor.
Sonhamos demais, pensamos demais.
E agora?
Maldição! Os pés tocam finalmente um chão que jamais
sonhei pisar.
Obrigado, Mago, por mais uma vez me teres ajudado a
aqui chegar.
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