sábado, 18 de junho de 2016

03 - O ABISMO



São nossos os passos que compreendo? Um abismo enorme fez-me estremecer após o ter vislumbrado e compreendido. Ali, diante de mim, o espaço vazio, horroroso, imenso, inquietante. Nele me debrucei, inconscientemente, estava possuído pelo som das balas que atravessavam o precipício e me assobiavam aos ouvidos. Não se calavam, nada mudava, apesar do cansaço acumulado dos combatentes que não se conseguiam afastar daquela guerra sanguinária e sem sentido. Dali não se afastavam um só milímetro, agarrados às armas que mantinham a cuspir fogo de forma continuada, quotidiana, porque nada mais ali havia para fazer senão disparar até à exaustão. A morte não chegava, esteve sempre ali bem perto de mim, mas não chegava. A tragédia morava do outro lado do abismo, habitava o profundo vale que meus olhos cansados não alcançavam, escondido pelas muitas nuvens que o cobriam e escondiam, lá bem em baixo. O meu corpo trémulo não se deixou enganar, e nem o som irritante das balas e dos disparos conseguiram esconder a rua principal para onde tinha sido atraído. Os jardins eram maravilhosos, mas estavam do lado de lá, no lugar onde as balas caíam. Fico quase sempre esquecido deste lado errado das coisas, no meio de tudo isto e de coisa nenhuma. Iludi-me! Julguei ver o que não era verdadeiro, escutar sons inexistentes, e o sono voltou, o muito sono que sempre me acompanhou, todo o sono, e as pálpebras pesaram-me mais do que o tamanho da distância do abismo.
Talvez tivesse chegado tarde demais, ou cedo demais. Talvez. Sinto esta frustração, pois o tempo de aqui estar não era este. Deixei-me arrastar até este lugar, concordei com os argumentos que me apresentaram, e eis-me agora com este sentimento incerto e de dúvida, deixei de compreender. Não existe solução para este enigma, desapareceu hoje de manhã antes de eu ter chegado, e deixei de ser o homem velho e pesado que pensou em atravessar o vazio como se fosse um pássaro impossível de interromper. A viagem terá de se realizar, amanhã, depois, quando o Destino entender, quero chegar ao outro lado, conhecer os pormenores e descobrir as pessoas que ali desembarcaram antes de mim. Tenha pressa de chegar, e inveja dos que lá estão. Bebi um copo de vinho novo sem entontecer, e fui levado a acreditar que já não faltará muito para sair deste carro inútil onde não tenho existido. Fecho os olhos, voltei de novo a sonhar o sonho maldito, estou cansado, as balas não param de zunir à minha volta, não param de não me acertar. Decido dar um passo em diante na direção do abismo que se esconde por detrás do nevoeiro cerrado que ganhou estranhos tons de verde e de azul, antes de se ter tornado neste manto branco luminoso onde eu caio desamparado para dentro da vida.
Alguém será capaz de me dizer onde nos encontramos? Que nova filosofia será esta que desconhecemos? Mago, consegues escutar-me? Consegui chegar até esta moradia que também te embalou. Finges não me escutar, e eu faço de conta que sou capaz de te conhecer, o que faz de nós pessoas ridículas, tão ou mais ridículas do que a manhã do dia que ainda está por acontecer.
O sonho é tudo aquilo que nos embala.
A luz do novo dia ergue-se depois de nos ignorar, serena como sempre, imperial e sorridente, como sempre, e beijar-nos-á as faces com o seu calor.
Sonhamos demais, pensamos demais.
E agora?
Maldição! Os pés tocam finalmente um chão que jamais sonhei pisar.
Obrigado, Mago, por mais uma vez me teres ajudado a aqui chegar.

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