terça-feira, 14 de junho de 2016

02 - O MENDIGO




Mendigo que se prese não tem pressa de dormir. A neve cai como as palavras de um romance que nunca será escrito, são o fluxo continuado e frio de uma memória infinita jamais esquecida. Dormir, para quê, penso em dormir para recordar, mas o porteiro zeloso impede-me de entrar, com um sorriso, e as palavras brancas começam a desfilar no fundo negro de um filme inacabado do qual já só assisti ao final. Mundo misterioso este que aqui esculpiram, muito moderno, mas que com tanta modernidade se tornou insustentável e gelado, uma sombra do prometido, escuro, tão escuro e deprimente como a vassoura que o porteiro zeloso agitou no ar, ameaçador, depois de eu ter insistido outras tantas vezes para entrar. Perdi-lhes a conta, mas foram mais de muitas, e a vassoura atacou mesmo e quase me partia a cabeça e os dentes, e eu tive de fugir e abrigar-me. Estaria condenado se não o fizesse. O porteiro era alto e forte e sabia manejar a vassoura que tinha destinada para mendigos como nós. Esqueci-me das dores que me causou. Abriu-me o sobrolho direito, feriu-me com gravidade a testa e insistiu nas agressões até eu quase ter deixado de escutar. O sonho foi assim interrompido, mais uma vez, e eu que só queria ter alguém com quem desabafar.

Não mastigo comida sólida há três dias, não encontro espaço onde dormir, … eu não tinha pressa de dormir, mas agora estou cansado. A diferença que me podia fazer uma boa noite de sono! Mais não peço à vida, a partir de hoje, senão essa sensação de leveza só possível aos que se cobrem de ridículo e gostam de estar vivos com conforto e companhia. Quero mais vinho, de preferência sem sabor a vinagre, à hora do almoço de um dia tépido e original. É já só nisso que penso, e numa mulher bela que me aqueça e provoque a inveja de outros homens pela originalidade dos seus movimentos e por tanto se agarrar a mim e ao que resta dos meus sonhos. E desejo ser tão parvo e estúpido como os demais, como o Mago confessou, tentar de novo entrar na estalagem e beber com eles até que o calor da existência fútil regresse ao meu lar inexistente. Quero ficar por lá, sentado, a rir e a chorar, embriagado, este sonho ainda não sonhado, ainda não vivido. A emoção desse dia está para chegar.

Temos tempo, temos todo o tempo do mundo para ficar aqui à espera de chegar. Lentos, como são lentos e demoram a passar os minutos desta espera prodigiosa. O meu gato dorme ao meu lado, eu vejo-o a dormir, enroscado e circular, e lembro-me, como se lembrava o Mago, que tudo é sono, que tudo é um sonho que alguém sonhou. Apenas o Mago, por ser como só ele sofria, sabia antes de todos o que realmente era Verdade e acontecia.

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