Mendigo que se prese não tem pressa de dormir. A
neve cai como as palavras de um romance que nunca será escrito, são o fluxo
continuado e frio de uma memória infinita jamais esquecida. Dormir, para quê,
penso em dormir para recordar, mas o porteiro zeloso impede-me de entrar, com
um sorriso, e as palavras brancas começam a desfilar no fundo negro de um filme
inacabado do qual já só assisti ao final. Mundo misterioso este que aqui
esculpiram, muito moderno, mas que com tanta modernidade se tornou insustentável
e gelado, uma sombra do prometido, escuro, tão escuro e deprimente como a
vassoura que o porteiro zeloso agitou no ar, ameaçador, depois de eu ter
insistido outras tantas vezes para entrar. Perdi-lhes a conta, mas foram mais
de muitas, e a vassoura atacou mesmo e quase me partia a cabeça e os dentes, e
eu tive de fugir e abrigar-me. Estaria condenado se não o fizesse. O porteiro
era alto e forte e sabia manejar a vassoura que tinha destinada para mendigos
como nós. Esqueci-me das dores que me causou. Abriu-me o sobrolho direito,
feriu-me com gravidade a testa e insistiu nas agressões até eu quase ter
deixado de escutar. O sonho foi assim interrompido, mais uma vez, e eu que só
queria ter alguém com quem desabafar.
Não mastigo comida sólida há três dias, não encontro
espaço onde dormir, … eu não tinha pressa de dormir, mas agora estou cansado. A
diferença que me podia fazer uma boa noite de sono! Mais não peço à vida, a
partir de hoje, senão essa sensação de leveza só possível aos que se cobrem de
ridículo e gostam de estar vivos com conforto e companhia. Quero mais vinho, de
preferência sem sabor a vinagre, à hora do almoço de um dia tépido e original.
É já só nisso que penso, e numa mulher bela que me aqueça e provoque a inveja
de outros homens pela originalidade dos seus movimentos e por tanto se agarrar
a mim e ao que resta dos meus sonhos. E desejo ser tão parvo e estúpido como os
demais, como o Mago confessou, tentar de novo entrar na estalagem e beber com
eles até que o calor da existência fútil regresse ao meu lar inexistente. Quero
ficar por lá, sentado, a rir e a chorar, embriagado, este sonho ainda não
sonhado, ainda não vivido. A emoção desse dia está para chegar.
Temos tempo, temos todo o tempo do mundo para ficar
aqui à espera de chegar. Lentos, como são lentos e demoram a passar os minutos
desta espera prodigiosa. O meu gato dorme ao meu lado, eu vejo-o a dormir,
enroscado e circular, e lembro-me, como se lembrava o Mago, que tudo é sono,
que tudo é um sonho que alguém sonhou. Apenas o Mago, por ser como só ele
sofria, sabia antes de todos o que realmente era Verdade e acontecia.
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