sexta-feira, 10 de junho de 2016

01 - O MAGO



Vejo, escuto, ouço e enlouqueço. Por toda a parte o manto invisível do que não vislumbro e desconheço cresce, invade os espaços vazios que são atacados de imediato por essa espécie de vírus implacável e eu, como os outros que por lá caminham, deixei de conseguir escutar.

Reli o Mago que nunca existiu, o que sempre soube e disse, e escreveu que “os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa da não ser outro, a insatisfação da existência do mundo”. O Mago dizia ainda que “para todos nós descerá a noite e chegará a diligência”, mas de inútil nada têm os sonhos, são o que dão voz e substância aos milhares e nos visitam a horas impróprias, todos os dias, abstratos, insensíveis, poderosos, com a mesma singeleza pueril da indiferença com que brilham as estrelas. A Arte mora na mesma rua que a Vida, só que em lugar diferente, e depois repetia os mesmos pensamentos, as mesmas falas e os mesmos gestos até à exaustão, voltava a fazer as mesmas perguntas, a escutar idênticas respostas até conseguir aliviar a febre de que padecia. Depois continuava a construir paisagens com o que sentia, o condenado. Teve sono, dentro e fora do espaço invadido pelo manto invisível que não parava de crescer. Resolveu dormir e imaginou, com ternura e lágrimas nos olhos, a imagem do tinteiro velho onde se servia, e escreveu a banalidade da Vida com a força com que tudo lhe interessava e nada o prendia. A dormir, ou talvez acordado, ou talvez a dormir acordado ou acordado a dormir sonhando que estava acordado, a tudo atendeu, sonhando sempre. Pensava noutras coisas, em partes escondidas de conversas, narrativas que já não se recordava terem acontecido. Prisioneiro mendigo, tinha sono, muito sono, e não sabia porquê, nele não havia sossego nem desejo de o ter.

Uma vontade impossível, uma quase impotência física de não sermos capazes de nos afastarmos da banalidade do quotidiano por nos alimentarmos dela como hienas, para que, como só o Mago sabia explicar, dizer que era do tamanho do que via, e não do tamanho da sua altura. Outro Mago, talvez o mesmo, afirmou, um dia, só saber que nada sabia. Os dois Magos, ou o mesmo, encostaram-se depois a uma parede para meditar com as frases que sentiram e onde cabia o somatório das suas sensações

O morto sabia, quando ainda não o era, o quão perversas as suas palavras vibrariam em almas que não a sua, que passariam logo ali a ser também a sua alma. E deu-se por satisfeito, o Mago, que gostaria de ter acabado com a paisagem e a meditação, gritando, mas não o fez.

O Mago, de quando em vez, vem falar comigo. Revela-se importante para mim tentar alinhavar algumas destas conversas improváveis, apesar de andarmos cansados e apressados. Já não somos propriamente crianças, nem tão-pouco o seu reflexo. Em comum, o sonho, refúgio estúpido e pobrezinho dos que resolvem pôr-se à escuta e se refugiam nesse manto ondulado e duro para meditar.

“Dizer o que se sente exatamente como se sente”.

Dizer o que sentimos exatamente como sentimos, tal e qual, sem sistemas ou estilos, somente o uso da verdade, clara se for clara, obscura se obscura, confusa, se for confusa… e fazer qualquer coisa completa, inteira, não importa se boa ou má. E sonhar, apenas porque se o deixarmos de fazer, deixaremos de ser homens de ação.

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