Vejo, escuto, ouço e enlouqueço. Por toda a parte o manto
invisível do que não vislumbro e desconheço cresce, invade os espaços vazios
que são atacados de imediato por essa espécie de vírus implacável e eu, como os
outros que por lá caminham, deixei de conseguir escutar.
Reli o Mago que nunca existiu, o que sempre soube e
disse, e escreveu que “os sentimentos que mais doem, as emoções que mais
pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente
porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia
ter sido, a mágoa da não ser outro, a insatisfação da existência do mundo”. O
Mago dizia ainda que “para todos nós descerá a noite e chegará a diligência”,
mas de inútil nada têm os sonhos, são o que dão voz e substância aos milhares e
nos visitam a horas impróprias, todos os dias, abstratos, insensíveis,
poderosos, com a mesma singeleza pueril da indiferença com que brilham as
estrelas. A Arte mora na mesma rua que a Vida, só que em lugar diferente, e
depois repetia os mesmos pensamentos, as mesmas falas e os mesmos gestos até à
exaustão, voltava a fazer as mesmas perguntas, a escutar idênticas respostas
até conseguir aliviar a febre de que padecia. Depois continuava a construir
paisagens com o que sentia, o condenado. Teve sono, dentro e fora do espaço
invadido pelo manto invisível que não parava de crescer. Resolveu dormir e
imaginou, com ternura e lágrimas nos olhos, a imagem do tinteiro velho onde se
servia, e escreveu a banalidade da Vida com a força com que tudo lhe
interessava e nada o prendia. A dormir, ou talvez acordado, ou talvez a dormir
acordado ou acordado a dormir sonhando que estava acordado, a tudo atendeu,
sonhando sempre. Pensava noutras coisas, em partes escondidas de conversas,
narrativas que já não se recordava terem acontecido. Prisioneiro mendigo, tinha
sono, muito sono, e não sabia porquê, nele não havia sossego nem desejo de o
ter.
Uma vontade impossível, uma quase impotência física
de não sermos capazes de nos afastarmos da banalidade do quotidiano por nos
alimentarmos dela como hienas, para que, como só o Mago sabia explicar, dizer
que era do tamanho do que via, e não do tamanho da sua altura. Outro Mago,
talvez o mesmo, afirmou, um dia, só saber que nada sabia. Os dois Magos, ou o
mesmo, encostaram-se depois a uma parede para meditar com as frases que
sentiram e onde cabia o somatório das suas sensações
O morto sabia, quando ainda não o era, o quão
perversas as suas palavras vibrariam em almas que não a sua, que passariam logo
ali a ser também a sua alma. E deu-se por satisfeito, o Mago, que gostaria de
ter acabado com a paisagem e a meditação, gritando, mas não o fez.
O Mago, de quando em vez, vem falar comigo.
Revela-se importante para mim tentar alinhavar algumas destas conversas
improváveis, apesar de andarmos cansados e apressados. Já não somos
propriamente crianças, nem tão-pouco o seu reflexo. Em comum, o sonho, refúgio
estúpido e pobrezinho dos que resolvem pôr-se à escuta e se refugiam nesse
manto ondulado e duro para meditar.
“Dizer o que se sente exatamente como se sente”.
Dizer o que sentimos exatamente como sentimos, tal e
qual, sem sistemas ou estilos, somente o uso da verdade, clara se for clara,
obscura se obscura, confusa, se for confusa… e fazer qualquer coisa completa,
inteira, não importa se boa ou má. E sonhar, apenas porque se o deixarmos de
fazer, deixaremos de ser homens de ação.
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